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Coluna: Adeus, Gracinha!


Alfons Altmicks

Diretor de Ensino e Extensão


O ano exato, não sei precisar. Eu devia ter algo entre 7 ou 8 anos, o que nos coloca no final da década de 1970 ou início dos 80’s. Ela entrou – falante, exuberante, estonteante – no ateliê da minha tia Djoca, pegada pela mão com um rapaz bonito, com cara de poeta. Não tinha a menor ideia de quem fossem, mas percebi que se tratava de uma gente famosa (pelo burburinho que se formou na porta do número 37, da Alfredo de Brito, coração do Pelourinho). Minha tia Djoca costumava receber turistas, artistas e políticos importantes no seu ateliê. Costureira de mão cheia, ia buscar cambraia em Tobias Barreto, renda em Ilha de Maré, fio de sisal em Valente... tudo para criar aquelas peças únicas, coloridíssimas, do vestuário afro-folk-hippie soteropolitano. “Tapa-cueiro de gringo”, “fantasia de artista”, “roupa de santo”.


Mas a moça entrou. O Pelourinho era o Pelourinho boêmio e selvático de antes, bem diferente do Pelourinho shopping center de ACM, o Velho. Pouca gente da terra circulava por ali. Não havia badalação, não tinha happy hour, ninguém sabia que diacho era o Olodum (só o povo do Maciel de Baixo). Pelourinho sem Spike Lee e sem Michael Jackson, Pelourinho sem Cartier e sem Galeria Ebenézer. Pelourinho sem Quincas, sem Teresa e sem Pedro Arcanjo. Pelourinho dos sobrados caindo aos pedaços, repartidos entre famílias, restaurantes, ateliês, terreiros e cabarés.


A moça entrou, e o tempo, simplesmente, estancou. A arraia miúda trabalhava, dia e noite, naquele Pelourinho. Artesãos, santeiros, pintores, comerciantes, funcionários da Cúria, tapeceiros do Taboão, beatas eternamente lavando os átrios das igrejas da Sé e de São Pedro dos Clérigos. O restante dos soteropolitanos evitava o Centro Histórico, raramente ultrapassando a Baixa dos Sapateiros, cujo comércio fervilhava. Nesse dia, o Pelourinho parou para ver a moça que entrava no ateliê, com o seu amigo poeta pegado pela mão. Era o povo mais fraco do Pelourinho, espremido na enorme porta colonial, espichando o pescoço para ver um naco da beleza da moça.


A moça entrou com o seu amigo poeta pegado pela mão, e minha tia Djoca abriu aquele sorriso hipnótico que só ela sabia. “Gracinha, mulher! Cadê tu?” As duas se abraçaram. Eu, encantado, olhava no enlevo de Oxum. A moça era muito magra, energética, cabelos fartos, pretos, de fios grossos, contrastando – quase como uma moldura – um rostinho juvenil, marmóreo, de onde saltavam olhos sonhadores e uma boca muito vermelha, desenhada com esmero. Mistura perfeita de tabaroa e femme fatale. Ela ocupava todos os espaços do pequeno ateliê, movia-se com a desenvoltura de Terpsícore, gesticulava com a graciosidade de Yewá na gira.


A moça conversou 10 minutinhos, enquanto olhava os vestidos nas araras, passou perto de mim, no canto, e deu com a mão na minha cabeça. Depois, acomodou nos braços os pacotes que já a esperavam e se foi, com o seu amigo poeta pegado pela mão. Anos mais tarde, descobriria que o rapaz tinha um nome engraçado; ele se chamava Waly, esse moço de Jequié (a cara de Othon Bastos). Dizem que era uma temeridade com as palavras, chegou a receber um tal de Prêmio Jabuti, que só quem é bom mesmo com as palavras recebe.


A moça saiu, para nunca mais sair da memória daquele que, provavelmente, foi o meu primeiro amor. Saiu para retornar na capa de um long-play, anos depois, olhando-me fixamente, com uma rosa amarela e outra vermelha nos cabelos. Saiu para que eu nunca esquecesse a sua figura fosforescente na luz apagada do “último blues” de Chico. Saiu, permanecendo na lembrança da sua voz, aguda e maviosa, como um sino budista, ecoando pelas galerias austeras do Teatro Castro Alves, em uma futura noite chuvosa, muito tempo depois.


Hoje, a moça saiu deste nosso plano de existência, para nunca mais deixar o seleto grupo de vozes femininas magistrais da Música Popular Brasileira. Foi se juntar a Dalva, a Ângela, a Elis, a Elza, a Dolores, a Nara, a Elizeth, a Clara, a Clementina, a Jovelina... é claro que a tristeza nos toma o coração, mas, pensando bem, talvez seja mesmo o destino da moça viver como encantado, no fio de canto do assanhaço, no marulhar das ondas na Ribeira, na lágrima do apito do trem.


Adeus, Gracinha.

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